Movimentos temem que acordo aconteça nos moldes de Brumadinho, e que naturalize rompimentos de barragens
“Na avaliação das vítimas e de parlamentares, a tratativa, que aconteceu sem a participação efetiva dos atingidos, foi moldada para atender aos interesses do governador Romeu Zema.” – Foto: Reprodução/ Mídia Ninja
Após ser suspenso durante o período eleitoral, as discussões sobre um novo acordo de reparação para o crime socioambiental de responsabilidade das mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton, ocorrido em 2015 na bacia do Rio Doce, foram retomadas.
A negociação corre em sigilo judicial e é protagonizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Além do órgão, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, e outras entidades, como o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública Federal e seus representantes estaduais também participam dos debates. As instituições têm classificado o acordo como a maior negociação jurídica do mundo sobre reparação ambiental.
No entanto, a principal preocupação sobre o tema, que vem motivando manifestações e articulações dos atingidos, e também do poder Legislativo, é que o acordo se dê nos moldes da repactuação acordada, em 2021, sobre o crime da Vale em Brumadinho.
Na avaliação das vítimas e de parlamentares, a tratativa, que aconteceu sem a participação efetiva dos atingidos, foi moldada para atender aos interesses políticos e eleitoreiros do governador Romeu Zema (Novo).
Joceli Andrioli, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ressalta que, além do Executivo, esse tipo de repactuação interessa sobretudo às mineradoras. “No mesmo ano em que a Vale fechou o acordo de Brumadinho com Zema, a mineradora teve uma valorização nas suas ações de mais de R$ 100 bilhões. Ou seja, a Vale lucra com isso, porque garante estabilidade jurídica aos acionistas e empreendedores”, critica.
O Conselho Nacional de Justiça, como declarou, em audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) no último dia 27, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello, alega que é impossível garantir a participação efetiva dos atingidos na mesa de negociação, mas que as comunidades têm sido representadas pelas entidades de Justiça.
“Não consigo colocar cinco, dez pessoas na mesa porque não é uma assembleia, é uma mesa de negociação. À mesa, temos três ministérios públicos e três defensorias públicas que têm atribuição legal e constitucional de defender o interesse das pessoas atingidas”, afirmou.
Confiança quebrada
No entanto, as vítimas do crime não se sentem mais representadas por esses órgãos. “Não consideramos mais o Ministério Público e a Defensoria como porta-vozes dos atingidos. Eles não falam por nós. Como que a gente pode confiar em órgãos que dão martelada contra os atingidos?” declara Simone Silva, moradora de Barra Longa.
O estopim foi o acordo assinado, em fevereiro deste ano, entre as entidades e as mineradoras. O contrato dá fim às reivindicações de cerca de mil famílias que tiveram seus imóveis afetados direta ou indiretamente pelo crime. Os termos do pacto desagradaram as vítimas.
Uma das questões apontadas pelos atingidos é que houve parcialidade nas vistorias nos imóveis, já que o serviço foi executado por uma empresa parceira da Vale. “Como que a Justiça aceita uma empresa que presta serviço para quem cometeu o crime, ditar quanto o atingido deve receber? É inaceitável”, denuncia Simone Silva. As perícias foram realizadas pela empresa estadunidense Aecom.
Em 2020, a Agência Pública divulgou uma reportagem denunciando o vínculo existente entre a empresa e mineradoras que atuam no Brasil, entre elas a BHP Billiton. A publicação questionava a parcialidade da empresa para realizar o serviço de fiscalização de barragens, contratado pela Agência Nacional de Mineração. Na época, o veículo indagou ao Ministério Público Federal sobre a situação, que afirmou que iria apurar o caso.
Outra denúncia dos atingidos é que os valores estimados para a reforma dos imóveis estão abaixo dos gastos que serão de fato empenhados pelos moradores e sequer quitariam o custo com a mão de obra para o serviço. O imóvel de Simone, por exemplo, está interditado pela Defesa Civil e precisará ser demolido e completamente reconstruído.
Os valores das indenizações previstas no acordo variam entre R$ 6 mil, R$ 8 mil e R$ 12 mil. Mas alguns danos foram avaliados até mesmo em zero reais. “Eles deram aval para a estratégia, que as criminosas já usaram outras vezes com as famílias, de pagar valores diferentes para as mesmas situações. Isso é para gerar conflito entre os atingidos”, completa.
Simone afirma ainda que os moradores não foram consultados sobre os valores e termos do acordo e, por imposição do contrato, não podem recorrer. O termo estabelece ainda que as famílias têm um prazo de seis meses, após receberem a indenização, para realizarem as reformas e deixarem as casas alugadas, onde foram instaladas pelas mineradoras em caráter “provisório” há quase oito anos. “Os atingidos vão morar onde? Embaixo da ponte? Vão para a rua?”, questiona a atingida.
Repactuação não pode naturalizar rompimentos nem impunidade dos crimes
Marta de Freitas, da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), chama a atenção para outro tema. Ela avalia que a repactuação de Brumadinho naturalizou os rompimentos de barragens e a impunidade sobre os crimes.
“Todos os recursos envolvidos foram para equipar melhor os órgãos públicos que remediaram as consequências do crime, como a Defesa Civil e a Medicina Legal. Não foi gasto um tostão para evitar novos acidentes”, pontua. “Não sou contra o investimento nessas instituições, mas não há sequer uma cláusula de promoção, prevenção e proteção da saúde da população, dos trabalhadores e do meio ambiente”, completa.
Para ela, a repactuação também não pode ignorar vítimas do crime que até hoje não foram reconhecidas como atingidas, como os trabalhadores próprios e terceirizados da Vale, Samarco e BHP Billiton. Marta relata que sem a garantia de qualquer direito, a categoria enfrenta dificuldades financeiras e de saúde, com casos inclusive de autoextermínio.
“Não podemos perpetuar a impunidade do crime. Vejamos o caso da Gameleira, por exemplo, quase cinquenta anos depois, nenhum dos trabalhadores foi indenizado”, pontua, relembrando o desabamento de um pavilhão, em Belo Horizonte em 1971, que vitimou pelo menos 69 pessoas, segundo maior acidente de trabalho do país.
Falta de transparência sobre gastos da Renova
Outra preocupação do movimento é a amortização que as empresas pretendem fazer sobre os gastos já empenhados na reparação do crime. Marta critica a falta de transparência da Fundação Renova, entidade criada pelas mineradoras para gerenciar a reparação, na execução dos recursos.
Em novembro de 2022, data que marcou o aniversário de sete anos do crime, apenas 78 imóveis, das 350 casas previstas para o reassentamento das famílias desabrigadas pela lama foram entregues. “Não podemos descontar da repactuação aquilo que a Renova não gastou com os atingidos nem com a reparação do meio ambiente, e mesmo aquilo que ela gastou precisa passar por uma auditoria independente”, alerta.
O deputado Ulysses Gomes (PT), presidente da Comissão Extraordinária de Acompanhamento do Acordo de Mariana na Assembleia Legislativa classificou a reparação construída pela Fundação Renova como um serviço fracassado.
“Dos 42 projetos de reparação propostos pela fundação, apenas dois foram finalizados e só 16 contam com projetos para sua execução”, exemplificou. O parlamentar questionou ainda, durante audiência sobre o tema, a pouca transparência nas tratativas sobre a repactuação em curso no Conselho Nacional de Justiça e afirmou que haverá uma atuação ativa da Casa nesse sentido.
Além da articulação mineira, na Câmara Federal também foi instalada neste ano uma comissão externa para acompanhar a repactuação do crime. Os trabalhos são coordenados pelo deputado Rogério Correia (PT), autor da lei “Mar de lama nunca mais”. Além do parlamentar, também compõem a comissão os deputados Patrus Ananias, Padre João, ambos do PT, e a deputada Célia Xakriabá (PSOL), entre outros.
Articulação com o governo Federal
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) afirma que está em articulação com o governo Lula para uma intervenção na situação. De acordo com Joceli Andrioli, o Executivo federal se propôs a acompanhar o caso a partir de um grupo de trabalho constituído dentro da Casa Civil.
“Não somos contra ter um acordo, desde que a população seja ouvida e tenha direito à participação qualificada, sendo assessorada tecnicamente, com os instrumentos necessários para participar de maneira empoderada desse processo”, esclarece.
O dirigente pontua ainda que a expectativa é que haja cadeiras para a participação do MAB e de outras entidades que atuam na bacia do Rio Doce dentro desse grupo de trabalho. “Quando os atingidos não participam, o que acontece é a capitalização dos recursos para pautas eleitoreiras, como o ‘rodominério’ proposto por Zema”, completa.
O outro lado
Procurados, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública Federal não se posicionaram sobre os questionamentos até o fechamento desta reportagem.
Já a Fundação Renova, afirmou por meio de nota que a instituição “é uma entidade privada, sem fins lucrativos, baseada na transparência e no diálogo com a sociedade”, e que “os processos da fundação são acompanhados e fiscalizados, permanentemente, por auditorias externas independentes”.
Edição: Larissa Costa / Brasil de Fato