Justiça do Trabalho restabeleceu direitos de 38 radialistas, que estavam excluídos de Plano de Cargos e Salários. Decisão impacta a atual estrutura da Empresa Mineira de Comunicação (EMC), que tem sido alvo de arbitrariedades e uso político do governo Zema
Em uma decisão vitoriosa para os trabalhadores e que expõe mais uma arbitrariedade do governo Zema (Novo), a Justiça do Trabalho anulou o Plano de Cargos e Salários (PCS) da Rádio Inconfidência, que prejudicava 38 radialistas em sua progressão profissional. A determinação restabelece o PCS anterior, de 2008, garantindo a todos os servidores da emissora o direito de ter plano de carreira e salário justo. A ação foi movida pelo Sindicato dos Radialistas de Minas Gerais.
O novo PCS implementado por Zema apresentava um texto diferente do que foi elaborado entre 2021 e 2022 com a participação dos trabalhadores e dos sindicatos. O plano excluía os radialistas e beneficiava apenas os empregados comissionados com aumentos salariais e a possibilidade de apostilamento. Inicialmente, os sindicatos chegaram a acreditar que havia tido engano na publicação, mas a situação revelou-se uma desonestidade que agora foi revertida pela decisão judicial.
Na tentativa de “justificar” a exclusão dos radialistas, a diretoria da Rádio Inconfidência argumentou, durante o processo, ser uma empresa dependente financeiramente do estado, afirmando que suas funções poderiam ser desempenhadas por “sistemas de automação”.
Lina Rocha, presidenta do Sindicato dos Jornalistas e funcionária da Inconfidência, considerou a decisão uma correção de uma das maiores injustiças já cometidas contra os radialistas. “Os técnicos são essenciais para a Rádio Inconfidência ir ao ar. Vários processos já foram derrotados e continuam em tramitação contra irregularidades na emissora pública. Erros que poderiam ser evitados, mas que por má administração seguem deixando inúmeros passivos e danos aos cofres públicos”, afirmou Lina. Ela ressaltou que essa injustiça relacionada ao PCS poderá resultar em outros processos para corrigir as falhas de um plano mal elaborado e irregular.
Segundo Lina Rocha, ao reverter para o plano de 2008, a decisão judicial impacta diretamente a atual estrutura da Empresa Mineira de Comunicação. Embora a Justiça tenha tomado essa decisão favorável aos trabalhadores, ainda cabe recurso por parte da Rádio Inconfidência/Governo de Minas.
Ao longo dos últimos anos, a Empresa Mineira de Comunicação (EMC), da qual fazem parte a Rádio Inconfidência e a TV Rede Minas, tem sido alvo constante de arbitrariedades e de uso político do governo Zema.
Viaturas, pregações e pressões: a estranha Rede Minas de Romeu Zema
Por: Revista Piauí
Música tensa, barulho de sirenes ao fundo. Com a voz de quem fala ao telefone, o repórter e apresentador André Santos indaga: “Vocês já estão a caminho? Quantas viaturas vocês estão deslocando? Quantos homens? Comandante, a operação vai sair agora?” Numa dinâmica sucessão de imagens, André caminha pela redação, escreve ao computador, gesticula nervoso para as câmeras. E anuncia: “Minas em Ação: o dia a dia da segurança em Minas. O seu novo noticiário na Rede Minas. Te espero!”
O Minas em Ação estreou às 11 horas do dia 22 de julho. Como sugere a chamada descrita acima, trata-se de um telejornal policial nos moldes do Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, que era apresentado pelo agora candidato à prefeitura de São Paulo José Luiz Datena (PSDB), e do Balanço Geral, da Record, uma das atrações que projetou o hoje deputado estadual e candidato a prefeito de Belo Horizonte Mauro Tramonte (Republicanos).
Esta não foi a única novidade na grade da programação da Rede Minas, emissora de TV pública criada em Minas Gerais no ano de 1984 com o intuito de “produzir e difundir programas educativos, culturais e artísticos”. No mesmo dia 22 de julho, às 8h15, entrou no ar o desenho infantil Danizinha Protetora. Criada por Daniela Linhares, pastora da Igreja Batista Getsêmani, a animação, segundo a descrição em suas redes sociais, “tem como propósito proteger as crianças contra as ameaças que podem tirá-las de sua infância”. Em postagens em sua página no Instagram, a pastora, que conta mais de 113 mil seguidores, aparece abraçada à senadora Damares Alves (Republicanos) e, de verde e amarelo em outra foto, comparece a uma manifestação de rua em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Com episódios curtos, de cerca de 10 minutos, mesclando animação e atores fantasiados, Danizinha trata de “valorizar a família” (episódio 7), da necessidade de se perseguir “sonhos e metas” (episódio 10) e da “importância da fé” (episódio 13). Ao fim de cada edição, convida as crianças a apontarem a câmera dos telefones celulares ao QR code que surge na tela. Assim, elas são direcionadas ao Youtube da personagem, onde há link para suas outras redes virtuais. No Instagram de Danizinha, os pequenos verão postagens que incluem temas como aborto e uma série de desenhos com crianças pequenas ao lado de frases sobre gênero e sexualidade, como “Alguém que não está pronto para escolher o que comer estaria pronto para ‘escolher’ seu próprio gênero?” (e variações dessa pergunta). Em outro post, há uma tela dividida em azul e rosa, com um menino de um lado e uma menina do outro: “Quer tenhamos nascido meninos ou meninas, nascemos para a glória de Deus e o inimigo almeja macular esta verdade.”
Dois dias após a estreia de Danizinha, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos pediu ao Ministério Público de Minas Gerais que investigue se a atração fere a laicidade do Estado e se a sua veiculação em uma tevê pública privilegia interesses privados em detrimento do interesse público.
São atrações bem diferentes daquelas às quais o telespectador da Rede Minas está habituado. Boa parte de sua programação ainda é voltada para cultura e educação, como os programas Conversações e Cinematógrafo. Alguns programas da paulista TV Cultura, como o Roda Viva e o Jornal da Cultura, e da TV Brasil, como o Sem Censura, seguem na programação. Foi pela Rede Minas, aliás, que os mineiros assistiram no passado a clássicos como Mundo da Lua ou Castelo Rá-Tim-Bum.
No comando de Danizinha, Minas em Ação e outras novidades está Leonardo Vitor de Oliveira, que em março deste ano foi indicado pelo governador Romeu Zema (Novo) ao cargo de diretor de Conteúdo e Programação da Empresa Mineira de Comunicação (EMC). Além da Rede Minas, a EMC engloba a rádio Inconfidência, a “Brasileiríssima”, uma das emissoras mais tradicionais do país, em atividade desde 1936.
Ex-membro do Movimento Brasil Livre (MBL) e atualmente filiado ao mesmo partido de Zema, Oliveira candidatou-se a deputado estadual em 2018 e 2022, mas não se elegeu. Nesse meio-tempo, participou como militante das eleições municipais de 2020. Em função de um vídeo que postou em suas redes sociais na época, em que acusava um adversário político de ameaçá-lo de morte, Oliveira é hoje réu sob acusação de calúnia, injúria e difamação num processo que corre na primeira instância da Justiça de Minas Gerais. Em declaração ao portal O Fator, Oliveira declarou não ter conhecimento sobre o processo.
Suas redes sociais são recheadas de fotos suas portando armas de fogo. Ele é defensor do fim do estatuto do desarmamento.
Oliveira é também empresário, dono da Start Up Comunicações Voz Ltda., cujo CNPJ encontra-se ativo na Receita Federal. A direção da EMC foi questionada pela piauí se o acúmulo das funções de empresário do ramo da publicidade e o cargo de chefia na empresa pública poderiam configurar conflito de interesses, mas a emissora não respondeu à pergunta.
Desde que Oliveira foi alçado à direção de conteúdo da EMC, tornou-se comum a cobertura de eventos evangélicos pelo jornalismo da Rede Minas. Foi o caso do Ore Comigo Music Festival, produzido por Fábio Lacerda, irmão do cantor sertanejo César Menotti e pastor da Igreja Batista da Lagoinha, atualmente liderada por André Valadão, no estádio Mineirão.
Propagandas do Ore Comigo foram veiculadas durante um mês tanto na rádio Inconfidência quanto na Rede Minas. Segundo funcionários da EMC ouvidos sob a condição de anonimato, por temerem retaliações, as propagandas foram ao ar gratuitamente, informação que a emissora também não comentou.
As atas da Comissão Editorial da EMC, de acesso público, dão uma medida da guinada promovida pelo novo comando e seu impacto sobre os servidores. A comissão é composta por funcionários das redações eleitos por seus pares e integrantes indicados pela chefia, e toda alteração na grade de programação tem de ser antes analisada pelo conselho. Não foi assim com Minas em Ação e Danizinha Protetora, que estrearam sem que o conselho fosse informado sobre os seus conteúdos.
Mesmo os programas avaliados e reprovados pelo conselho vão ao ar (o que não fere o estatuto, já que o conselho é consultivo e não deliberativo). Um exemplo é A Voz do Conselho, apresentado pelo pastor Jorge Linhares, pai da idealizadora de Danizinha e líder da igreja Batista Getsêmani. Ainda durante o governo Bolsonaro, Linhares foi recebido pelo presidente em Brasília, que por sua vez já se reuniu com o pastor em Belo Horizonte. No Voz do Conselho, temas variados são discutidos por pastores, sob títulos como “O líder e a excelência”, “Estou revoltado, e você?” e “O santo e o profano”. Na avaliação de outro conselho, o dos jornalistas da EMC, o conteúdo da atração era inadequado, posto que o Estado é laico, e sua produção, do ponto de vista técnico, deixa a desejar. Em novembro de 2021, A Voz do Conselho estreou num domingo, na mesma faixa das 07h15 da manhã que ocupa até hoje.
Também na reunião de 23 de maio de 2024, o conselho editorial estava esvaziado: a presidência da EMC não havia indicado o membro que lhe correspondia e a integrante escolhida pela gerência de jornalismo estava ausente. A pauta foi censura. Dois conselheiros eleitos pela redação relataram no encontro que “chegou a orientação para os programas não abordarem questões identitárias, notadamente as LGBT+”.
Uma semana depois, quando teve início o mês do Orgulho LGBTQIA+, os relatos de censura se multiplicaram. A direção da EMC afirmou, em nota, que “a sua programação jornalística é guiada essencialmente pelo compromisso com informações de interesse público, incluindo a temática LGBTQIAPN+, amplamente repercutida e difundida na programação da Rede Minas, da Rádio Inconfidência”. A piauí conversou com uma dezena de funcionários da Rede Minas e da Inconfidência. Dizem sofrer pressões para evitar pautas sobre dessa área.
Daniel Floresta, 34 anos, trabalhava na Rede Minas desde 2014. Sua última função foi a de produtor do Faixa de Cinema, que vai ao ar toda sexta-feira às 22h30. Entre suas atribuições estava a de contatar distribuidoras de filmes nacionais e conseguir a autorização para transmiti-los na tevê pública. Em 5 de julho, o filme exibido foi Quem tem medo? (2022), de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr. O longa trata da censura às artes no contexto da ascensão da extrema direita no Brasil.
Floresta conta que, na semana seguinte à exibição, foi chamado ao RH. Informaram-no de que perderia sua gratificação salarial e o cargo de produtor; e foi suspensa uma licença de trabalho remunerada que vinha negociando por meses a fim de fazer uma especialização em cinema na Argentina. Em meio ao que considerou como represálias da direção, pediu transferência para outro órgão do governo de Minas. “Sofri censura por exibir um filme sobre a censura”, diz Floresta. A piauí perguntou à EMC sobre casos de funcionários que dizem estar sendo retaliados por serem considerados “esquerdistas”, mas a emissora respondeu que as gratificações “são de livre nomeação e exoneração, e, devido a essa natureza, são transitórias”.
Lina Rocha, 50 anos, presidente do sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, diz que denúncias de profissionais da EMC chegam diariamente à entidade. “O clima é ruim para a maioria, que se sente assediada no trabalho, e viu suas funções serem esvaziadas.”
Uma dessas denúncias foi relatada na ata da reunião da Comissão Editorial do dia 2 de maio. Ela diz o seguinte: na manhã desse dia, um chefe comunicou aos editores de vídeo que eles teriam de se encarregar das legendas dos telejornais, já que o servidor responsável pela tarefa estava de férias. Um jornalista interpelou o superior, explicando que esta não é uma das responsabilidades dos editores. Seis testemunhas confirmaram esse relato à piauí: contam que o chefe disse que os editores estavam “fazendo corpo mole”. Um funcionário respondeu que cada servidor tem seus deveres descritos no edital do concurso público que prestou. As mesmas fontes dizem que o chefe respondeu: “Estou cagando para os concursados.” O caso foi encaminhado ao RH da EMC, que abriu uma sindicância para analisar se instaura um processo administrativo contra o profissional.
O último concurso público para admissão na Rádio Inconfidência aconteceu em 2005, e, na Rede Minas, em 2014. Desde então, apenas vagas comissionadas, sem necessidade de processo seletivo, foram criadas. Segundo a lei mineira, funcionários comissionados devem ocupar apenas cargos de chefia. Na prática, não é o que acontece na EMC, que conta com 88 comissionados, que representam aproximadamente 50% dos profissionais da empresa pública. Ainda na nota enviada à piauí, a EMC disse considerar que “todos os funcionários comissionados são nomeados de acordo com as legislações e as diretrizes legais vigentes”.
Coberturas como a do Ore Comigo e a do Congresso dos Homens – outro evento evangélico realizado em julho pela Igreja Batista Getsêmani e também divulgado pela Rede Minas – ficaram inteiramente a cargo de jornalistas comissionados e de estagiários, assim como a produção do policial Minas em Ação.
“A ideia é vencer os concursados pelo cansaço e lotar a EMC de comissionados, para que eles tenham o controle total da programação”, disse uma jornalista que trabalha há mais de dez anos na Rede Minas.
Algumas das reportagens conhecidas na redação como “rec” (isto é, recomendadas pela chefia, uma terminologia comum no jardão de emissoras de tevê para pautas propostas pela alta cúpula) também são produzidas por comissionados. No dia 13 de junho, foi veiculada na tevê e na rádio Inconfidência uma reportagem “rec” de quase seis minutos sobre uma briga em Igarapé, município de 46 mil habitantes próximo a Belo Horizonte. O vidro da frente de um carro foi quebrado a chutes, afirma a própria vítima, sem que ninguém se ferisse. O homem acusado de ser o agressor é irmão do vereador Leandro Barbado (PSB), candidato a vice-prefeito da cidade nas eleições deste ano, e quem o acusou foi o empresário Ênio de Oliveira Queiroz (o fato de ser uma das pouco mais de mil pessoas seguidas por Oliveira, o diretor de conteúdo da EMC, em sua página pessoal no Instagram, tem sido citado pelo acusado).
O tempo dedicado à reportagem, o fato de ter sido retransmitida na rádio e a maneira incomum com que foi produzida fez a reportagem virar assunto na Comissão Editorial da EMC. No encontro, membros destacaram que a ideia não foi discutida em reunião de pauta, que o texto foi editado diretamente pelo gerente de jornalismo, que os indícios de crime foram considerados mal apurados, que houve desequilíbrio de espaço entre o lado acusador e o acusado, e que o tema em si carecia de importância, já que o telejornal em que a matéria foi ao ar se propõe a cobrir “os fatos que mais se destacam no estado”.
“Os membros desta comissão se perguntaram qual seria o objetivo da matéria, o que queria entregar ao telespectador”, relata a ata. A direção da EMC não respondeu às indagações do Conselho Editorial.
Em seu plano de governo apresentado em 2018, o então candidato Zema defendia a privatização das estatais como uma forma de barrar “intervenções” e “troca de favores políticos” nessas empresas. Não mencionava quais delas seriam negociadas, nem de que maneira, limitando-se a afirmar que “a desestatização será um processo gradual e democrático”.
Foi basicamente o mesmo que Jair Bolsonaro prometeu sobre a EBC e a TV Brasil, que chamava de “TV Lula”, e que uma vez no governo transformou para que trabalhasse a seu favor.
Na avaliação do sindicato dos jornalistas de Minas, ao se dar conta de que a privatização da EMC seria uma longa e complexa empreitada, Zema preferiu esvaziar a empresa de concursados. “Todos os dias chegam novos profissionais em cargos de livre indicação do governo, além de estagiários que assumem funções de servidores da casa, o que fere a legislação trabalhista. A impressão que temos é de que a chefia quer mesmo o afastamento daqueles que têm ideologia contrária ao governo”, declarou a diretoria do sindicato, em nota enviada à piauí.
A rotatividade de profissionais concursados que decidem deixar a empresa também foi assunto da Comissão Editorial da EMC. “A Rede Minas sofre com pouca mão de obra profissional”, disse um conselheiro na reunião do dia 18 de abril, explicando que “vários funcionários estão saindo da tevê ou sendo demitidos da EMC por falta de estímulos e alta defasagem salarial”, de forma que, atualmente, “a EMC é sustentada por estagiários”. Na mesma reunião, outro conselheiro destacou “o excesso de reportagens recomendadas pela diretoria”, reclamação respaldada por seus colegas. “Muitas vezes a cobertura da agenda governamental é desproporcional a outros assuntos, dando menos atenção ao interesse público e mais aos assuntos do governo.”
Frente a isso, jornalistas da casa cobram a ação de órgãos de controle e fiscalização como o Ministério Público e a Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Situações como as descritas nesta reportagem já foram matéria de denúncias e requerimentos por parte das deputadas estaduais Bella Gonçalves (Psol), Lohanna (PV) e do deputado João Vitor Xavier (Cidadania).
Enquanto as denúncias vêm sendo analisadas, no último mês Gustavo Mendicino de Oliveira, presidente da EMC, esteve na França representando a Rede Minas na cobertura dos Jogos Olímpicos de 2024. Sua viagem internacional, “com ônus para o Estado”, está publicada na edição do Diário Oficial de Minas Gerais do dia 27 de julho, e foi autorizada e assinada por ele próprio. Mendicino também foi contatado pela piauí, mas preferiu não dar declarações à reportagem.
Fonte: Piauí, Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais