Referência em maternidade de alto risco, hospital está perto do colapso por falta de equipes e insumos. Quadro replica crise que já se desenha no HPS

Os relatos de colapso na saúde pública de Minas Gerais, que se acumulam desde a sobrecarga de atendimento no Hospital de Pronto Socorro João XXIII (HPS), em Belo Horizonte, batem à porta também do Hospital Júlia Kubitschek (HJK), no Bairro Flávio Marques Lisboa, no Barreiro. Referência em maternidade de alto risco e em especialidades de alta complexidade, a unidade opera hoje com leitos fechados por falta de equipe, insumos e equipamentos quebrados, segundo profissionais ouvidos pelo Estado de Minas.
Enquanto a situação se deteriora nos corredores e centros cirúrgicos, também pressionados nas últimas semanas pela alta de doenças respiratórias, o governo estadual corre para aprovar na Assembleia Legislativa projetos que podem abrir as portas para a terceirização da gestão das unidades administradas pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Hoje (5/5), deputados da Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social da Casa farão uma visita ao Júlia Kubitschek, a pedido do Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (Sind-Saúde).
As denúncias no HJK se somam a um cenário já pressionado na rede pública de saúde. Na semana passada, o pronto-socorro do Risoleta Tolentino Neves, na Região Norte de BH, teve que suspender atendimentos pela segunda vez neste ano por conta da superlotação, com quase o dobro da capacidade ocupada. No Hospital Maria Amélia Lins, no Hipercentro de BH, a suspensão das cirurgias há quase quatro meses, gerou um efeito cascata que sobrecarregou o João XXIII, forçando o governo a ativar um plano de urgência que até então só havia sido adotado durante a pandemia de COVID-19. A sobrecarga do sistema, agora agravada pela explosão de casos de doenças respiratórias, deixa os hospitais à beira do limite.
Segundo relatos de profissionais do Júlia Kubitschek ouvidos pela reportagem, o Centro de Terapia Intensiva (CTI), inaugurado em 2021, ainda no auge da pandemia de COVID-19, com a promessa de oferecer 40 leitos, tem hoje mais de 30% de suas unidades fechadas. Dos 40 previstos, 12 permanecem inutilizados pela falta de equipe médica e de enfermagem, mesmo após um investimento de mais de R$ 8 milhões e sete meses de obras. As intervenções haviam sido iniciadas em 2014 e ficaram paradas por seis anos antes da abertura do CTI. Outras duas enfermarias da ala cirúrgica também estão interditadas pelo mesmo motivo.
Como resultado, profissionais acumulam funções e chegam a assumir dois setores ao mesmo tempo, o que, segundo Neuza Freitas, diretora-executiva do Sind-Saúde, “impacta diretamente a saúde do trabalhador”. “Chegou a uma situação insustentável”, disse em entrevista ao EM. Enfermeiros relatam jornadas exaustivas e um clima de instabilidade constante, agravado por contratos que vencem sem renovação.
Procurada pela reportagem, a Fhemig informou que está recebendo servidores efetivos aprovados no último concurso público. Anteontem (3/5), a fundação também abriu edital para contratação emergencial de 33 profissionais temporários no Júlia Kubitschek como parte do decreto de situação de emergência em saúde pública, motivado pelo avanço das doenças respiratórias no estado. O hospital, que é uma das maiores unidades gerais de Minas, foi reconhecido em 2023 como referência nacional no tratamento de doenças respiratórias graves, por meio de portaria do Ministério da Saúde que destina quase R$ 10 milhões anuais ao setor.
Os profissionais do Júlia Kubitschek ainda têm de lidar com falta de insumos básicos para trabalhar. “Chegamos ao ponto de discutir falta de esparadrapo”, comenta a diretora-executiva do Sind-Saúde. Com isso, a rotina dos servidores tem sido marcada por improvisos. Na última terça-feira (29/4), o EM esteve na unidade, onde ouviu relatos de técnicos e enfermeiros que compraram, por conta própria, esparadrapo e micropore para não deixar pacientes desassistidos. “O que a gente ia fazer? Imagina isso no caso de um bebê?”, desabafou uma técnica em enfermagem sob anonimato.
Na outra ponta, os pacientes enfrentam atrasos, cancelamentos e longas esperas sem explicação. Na terça, a estudante Priscila Maria dos Santos, de 27 anos, chegou à unidade pela manhã com dores fortes na barriga e suspeita de pedra na vesícula. Esperou por mais de quatro horas. Quando foi atendida, fez o raio-x, mas saiu da unidade ainda sem diagnóstico e com dor. “Agora tem que esperar o resultado. Estou só cansada”, disse em tom resignado. A experiência de quem chega à unidade, no entanto, varia. Pacientes que tinham consultas agendadas relataram à reportagem atendimento normal.
Equipamentos quebrados
As denúncias vão além da falta de pessoal. Sistemas de ar-condicionado quebrados expõem equipes e pacientes a calor extremo, em um ambiente onde já foram registrados casos de desmaios de funcionários durante cirurgias. À reportagem, a Fhemig afirmou que está em andamento, em caráter emergencial, a compra de novos aparelhos para readequar as salas, porém não detalhou prazos.
Também há reclamações em relação aos equipamentos insuficientes. Um tomógrafo, aparelho utilizado em exames de tomografia computadorizada, ficou inoperante por cerca de seis meses no ano passado, e até hoje os radiologistas seguem utilizando um software de visualização de imagens em versão de teste, que se encerra automaticamente a cada poucos minutos, contou um profissional à reportagem. Na Central de Esterilização, apenas uma autoclave (equipamento usado para esterilizar materiais cirúrgicos) funciona atualmente. “Se parar, todos os procedimentos cirúrgicos da unidade serão suspensos”, diz. À reportagem, a Fhemig negou os casos e disse que a “informação não procede”.
A escassez de equipe é tamanha que os médicos cirurgiões são forçados a escolher entre procedimentos igualmente críticos, apesar de o centro cirúrgico do HJK ter duas salas abertas, uma para urgência e outra para eletivas. Segundo relatos, houve uma série de suspensões das cirurgias eletivas, primeiro pela falta de anestesias e agora pela carência de equipe de enfermagem. Em um episódio recente, descrito ao EM por um profissional, sob anonimato, foi necessário decidir entre realizar uma apendicectomia de emergência (cirurgia de retirada do apêndice em casos de inflamação ou infecção) ou a troca de curativo de um paciente queimado, simplesmente porque não havia recursos humanos suficientes para executar ambos os atendimentos simultaneamente. O caso ocorre menos de seis meses após o hospital passar a receber pacientes queimados como retaguarda do João XXIII.
O cenário é semelhante ao vivido pelos profissionais do próprio HPS desde que o bloco cirúrgico do Hospital Maria Amélia Lins foi fechado. Por lá, médicos denunciam um “efeito dominó” causado pela redistribuição dos pacientes, em que casos de urgência têm que esperar a liberação da sala de cirurgia ocupada por uma operação eletiva. Na tentativa de conter o colapso, o governo estadual acionou, em 25 de abril, o Plano de Capacidade Plena Hospitalar (PCPH) para o João XXIII, protocolo de rotina usado em larga escala durante a pandemia de COVID-19, para reorganizar fluxos e acelerar altas.
Fechamento do laboratório
Outra ameaça à operação do HJK, que completa 65 anos em setembro, é o iminente fechamento do laboratório próprio da unidade. A retirada dos equipamentos, segundo a diretora do Sind-Saúde-MG, está prevista para hoje (5/5), justamente no dia da visita dos deputados estaduais. Segundo a entidade, o volume de exames foi mantido, mas médicos ouvidos pelo EM relatam que apenas testes básicos, como o beta-hCG, estão disponíveis. Exames mais complexos, como os quantitativos, levam até três dias para ficarem prontos, o que compromete diagnósticos e decisões clínicas em uma unidade que é referência em maternidade de alto risco, especialidade geral que começou a ser atendida na unidade em 1993, após o fechamento do serviço no Hospital Sarah Kubitschek, e que hoje realiza cerca de 200 partos por mês.
A deficiência, segundo os profissionais, atinge também áreas especializadas. O HJK, que carrega em sua história a missão de referência no tratamento de doenças respiratórias — tendo sido fundado em 1958 como sanatório para tuberculose —, frequentemente não consegue concluir diagnósticos por falta de reagentes para líquor, acesso restrito à ressonância magnética e inexistência de exames genéticos. “Casos graves, como meningites, acabam sendo tratados sem confirmação diagnóstica”, conta um profissional da unidade.
Em assembleia realizada em 25 abril junto ao Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (Sind-Saúde), os trabalhadores denunciaram o colapso do hospital e cobraram providências urgentes do governo estadual. A partir das denúncias, deputados da ALMG foram acionados para fazer uma visita à unidade. A inspeção está marcada para hoje, a partir das 9h.
Tentativa de privatização
As denúncias ocorrem em meio à tramitação na ALMG de uma proposta para terceirizar a gestão de hospitais da Fhemig por meio de um Serviço Social Autônomo (SSA), como foi feito em março do ano passado com o Hospital Regional Antônio Dias (HRAD) em Patos de Minas, no Triângulo Mineiro. Caso seja aprovado, o Projeto de Lei (PL) 2.127/2024 prevê que o SSA administre os hospitais Alberto Cavalcanti, no Bairro Padre Eustáquio, na Região Noroeste; o Eduardo de Menezes, no Bairro Bonsucesso, Região do Barreiro; o Infantil João Paulo II, no Centro de BH; e a Maternidade Odete Valadares, no Prado, Região Oeste. A proposta atualmente aguarda análise da Comissão de Fiscalização Financeira e Orçamentária para seguir para votação em 1º turno no plenário.
A ideia do governo estadual é que a demanda dessas unidades seja absorvida por um novo complexo hospitalar, previsto para ser inaugurado em meados de 2028, no terreno do antigo Hospital Galba Velloso, no Bairro Gameleira, Região Oeste de BH. A nova unidade de saúde, batizada como Hospital Padre Eustáquio, promete 422 leitos, 60 consultórios, 13 salas de cirurgia, 200 mil consultas especializadas e 30 mil internações por ano — sem, no entanto, contar com pronto-socorro. O projeto terá investimento inicial de R$ 2,3 bilhões, somado a mais R$ 3 bilhões estimados para operação e manutenção.
A possibilidade de redirecionar os pacientes de quatro unidades para o futuro Hospital Padre Eustáquio vem sendo duramente criticada. Especialistas e servidores alertam para os riscos de concentrar em um único local todos os atendimentos de oncologia, infectologia, hematologia, pediatria e maternidade que hoje estão distribuídos em vários pontos da cidade. A preocupação é que o deslocamento de pacientes e a sobrecarga de um único complexo agravem ainda mais os gargalos já existentes no sistema público de saúde.
Desde o ano passado, o governo de Minas vem tentando emplacar editais de concessão para gestão hospitalar na Fhemig pelas chamadas Organizações Sociais (OSs), instituições privadas, sem fins lucrativos, que executam políticas públicas. Um exemplo é a Casa de Saúde São Francisco de Assis (CSSFA), em Bambuí, que teve o processo de concessão suspenso em dezembro de 2024 pelo Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCE-MG), após denúncias do Sind-Saúde/MG e do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG). Para o TCE-MG, a tentativa de repasse da gestão carecia de comprovação dos requisitos legais e apresentava risco de prejuízos aos cofres públicos, mesmo argumento usado pelo órgão para barrar a concessão do Hospital Maria Amélia Lins, em BH.
Raio-X do Júlia
- Fundado em 1960 como sanatório para o tratamento de casos de tuberculose;
Tem 323 leitos; - CTI inaugurado em 2021 tem 30% dos dos 40 leitos disponíveis inativos;
Referência em maternidade de alto risco; - Reconhecido em 2023 também como referência no cuidado de doenças respiratórias graves;
Atua desde janeiro de 2025 como retaguarda do Hospital João XXIII no tratamento a pacientes com queimaduras; - Atualmente, oferece assistência em especialidades como pneumologia, ginecologia e obstetrícia, clínica médica e cirurgias geral, torácica e plástica;
- Presta atendimento especializado a pacientes com doenças raras e a pessoas em situação de violência sexual.
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