As comunidades escolares de Raul Soares, Sericita e Manhuaçu denunciam falta de transparência, risco de demissões e ameaça à educação pública com o Projeto Mãos Dadas, que transfere responsabilidades sem garantias estruturais aos municípios

Enquanto a propaganda oficial insiste em vender a municipalização das escolas estaduais como modernização da educação, a realidade nos municípios mineiros segue revelando outra face do projeto Mãos Dadas, lançado pelo governo de Romeu Zema (Novo), em 2021. Com o discurso de descentralizar e otimizar a educação, o projeto, na prática, ameaça desmontar cerca de metade da rede estadual de ensino, com a transferência de responsabilidades do Estado para os municípios.
Diversas cidades, em que o projeto começou a ser implantado, relatam falta de transparência, ausência de diálogo com as comunidades escolares e riscos concretos à qualidade da educação pública. Para debater os impactos da municipalização no ensino, a Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) recebeu autoridades e representantes da comunidade escolar dos municípios da Zona da Mata: Raul Soares, Sericita e Manhuaçu.
Solicitadas por parlamentares do Bloco Democracia e Luta, as audiências públicas escancararam os riscos da adesão forçada ao projeto, que coloca em risco empregos, a qualidade da educação e a segurança das comunidades escolares.
Raul Soares: municipalização pode dobrar demanda e cortar 130 empregos
A última dessas audiências, solicitada pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), presidenta da comissão, aconteceu na segunda-feira (12/05) e tratou dos impactos negativos do Mãos Dadas no município de Raul Soares, na Zona da Mata.
Mesmo com desempenho insatisfatório nas metas educacionais e com graves deficiências no atendimento à educação fundamental, a comunidade escolar de Raul Soares enfrenta pressão para aderir ao Projeto Mãos Dadas. A proposta, prestes a ser votada pela Câmara Municipal, pretende dobrar o número de estudantes atendidos pelo município, que já enfrenta dificuldades para gerir as escolas atuais. Segundo o coordenador técnico do coordenador do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese – do Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação (Sind-Ute/MG), Diego Rossi, atualmente, o ensino municipal atende a cerca de 1200 alunos.
De acordo com o Tribunal de Contas do Estado (TCE), Raul Soares não cumpre as metas previstas no Plano Estadual de Educação (PNE), apresentando um Índice de Efetividade da Gestão Municipal com nota C, a pior de todas. Além de um déficit na educação infantil, na qual o município atende a apenas 20% das crianças, deixando 377 delas fora das creches.
Em alerta, Diego Rossi calculou ainda que, com a municipalização e consequente retirada de recursos estaduais, o per capita por aluno ao ano cairá dos atuais R$17 mil para R$12 mil e a prefeitura local terá que arcar com essa diferença. “O problema é que a educação tem continuidade e o recurso é finito, limitado e só pago uma única vez”, disse.
Já a deputada Beatriz Cerqueira destacou que a municipalização acarretará a demissão de cerca de 130 profissionais da rede estadual, incluindo professores de apoio, Auxiliares de Serviços de Educação Básica (ASBs), Assistentes Técnicos de Educação Básica (ATBs) e especialistas.
A situação preocupa ainda mais porque das sete escolas estaduais previstas para municipalização, a maioria é rural, atendendo comunidades já fragilizadas socialmente. “Não sabemos se essas escolas serão mantidas após a municipalização”, questionou Paulo Grossi, diretor estadual do Sind-Ute.
Para a vereadora Francislaine Matos, aprovar o projeto é “assinar um cheque em branco”. Ela relatou que foi excluída de reuniões sobre o tema, realizadas a portas fechadas entre representantes do Estado, Prefeitura e vereadores aliados. “Procurei ajuda jurídica para entender o projeto e, de cara, fui contra o Mãos Dadas. Depois, fiquei sabendo de reunião do Estado com prefeito e vereadores em um local privado, para a qual não fui chamada”, reclamou.
Já Alice Martins, coordenadora do Sind-UTE de Ponte Nova, questionou: “Como o prefeito vai querer incorporar mais sete escolas se não deu conta das 13 que já estão nas mãos dele?”
Diante dos números, a deputada Beatriz cobrou da Câmara Municipal um posicionamento sobre o projeto, avaliando que a municipalização gerará impactos negativos para a população local.
Sericita: a pressa para aprovar o indefensável
Em Sericita, a comunidade da Escola Estadual Clélia Bernardes denunciou graves irregularidades no processo de municipalização. De acordo com relatos apresentados, no dia 28/04, durante a audiência, solicitada pela deputada Beatriz Cerqueira e pelo deputado estadual Betão (PT), nem professores, nem servidores, nem mesmo os vereadores receberam informações adequadas sobre os impactos e condições da mudança.
Os parlamentares ressaltaram que a proposta, que sempre acarreta gastos adicionais para os municípios, nunca é discutida de forma suficiente com as comunidades escolares, e destacaram as denúncias feitas por professores da comunidade em reunião anterior.
“Eles trouxeram situações gravíssimas enfrentadas pela categoria”

Deputada Estadual Beatriz Cerqueira (PT)
“Esse mesmo processo acontece em várias cidades de Minas, ‘empurrando goela abaixo’ o projeto”

Bárbara Chaves, assistente técnica de Educação Básica da escola, questionou o motivo de a Superintendência Regional de Ensino (SRE) não ter realizado reuniões com o Colegiado, composto por alunos, pais, professores e servidores administrativos.
Já o professor Valdece Abreu lamentou que a categoria não tenha sido ouvida no próprio município. “Não tivemos a oportunidade de dialogar, como estamos tendo aqui”, afirmou. Ele destacou os desafios que os servidores terão que enfrentar com a municipalização: “Temos servidores prestes a se aposentar, que foram pegos de surpresa”.
A prefeitura local encaminhou projetos de lei confusos e contraditórios ao presidente da Câmara Municipal, Raimundo Rodrigues — um para os anos iniciais do ensino fundamental (que a escola sequer possui) e, em seguida, outro para os anos finais, ambos com erros e inconsistências no texto. Em análise ao texto, a deputada criticou a completa falta de transparência, por não constarem valores a serem pagos pelo Estado nem as finalidades dessas ações, além da coabitação de alunos e professores das redes municipal e estadual.
Como alerta para os problemas que serão criados na vida dos servidores, a parlamentar ainda destacou que, depois da municipalização, se um servidor não quiser continuar na escola ou mesmo se o prefeito não aprovar sua recolocação, terá que trabalhar em outra cidade, porque Sericita só tem uma escola estadual. Também advertiu que o processo de municipalização levará à demissão dos servidores contratados.
Segundo o economista Diego Rossi, após a municipalização, Sericita terá que fazer um aporte adicional de quase R$5 milhões por ano para manter o atual gasto por aluno, de R$16 mil. Ele detalhou que atualmente a prefeitura já arca com 34% dos gastos com a educação, o restante vem do Fundeb (57%) e de outras fontes (9%).
Rossi ainda citou relatórios do Tribunal de Contas do Estado apontando que Sericita está em débito com a educação local. Em 2023, o órgão apontou que, na faixa etária até 3 anos, apenas 27% das crianças foram atendidas. Já entre 4 e 5 anos o atendimento escolar foi universalizado.
Além de criticar a falta de transparência dos repasses financeiros previstos, Beatriz Cerqueira também questionou a ausência de representantes do governo na audiência:
“Eu sempre me pergunto: se elas conseguiram pegar a estrada, por que ninguém da prefeitura pôde fazer o mesmo? E, na impossibilidade de estar aqui presencialmente, poderiam ter participado virtualmente.”
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Manhuaçu: demissões, falta de diálogo e risco à educação inclusiva
Situação semelhante se desenha em Manhuaçu. O Projeto de Lei Municipal, que autoriza a adesão ao Mãos Dadas, foi duramente criticado por sua tramitação acelerada, sem audiências públicas ou estudos de impacto econômico e pedagógico. No caso de Manhuaçu, essa transferência envolveria matrículas de 10 escolas estaduais, que não teriam sido ouvidas ou informadas da intenção de municipalização.
A adesão colocaria em risco mais de 200 postos de trabalho, incluindo auxiliares, técnicos, professores regentes e profissionais de apoio — muitos deles responsáveis pelo atendimento de crianças da educação inclusiva.
Os números foram detalhados pela deputada Beatriz Cerqueira, que solicitou a audiência ocorrida no dia 25/04. “O impacto será gigantesco para todas as famílias, principalmente para crianças da educação inclusiva”, advertiu.
Para Cíntia, mãe atípica e representante da Associação de Autistas de Manhuaçu, o projeto é uma ameaça direta às crianças com deficiência, diante da demissão prevista de professores de apoio do Estado. “Para nós mães, o trabalho já é árduo e desgastante, o acesso das crianças à escola difícil, e agora ainda vem esse projeto que pode deixar nossa vida ainda mais complicada”, denunciou.
O economista Diego Rossi classificou o projeto como superficial e alertou para a piora constante nos indicadores de educação da cidade, agravada pela ausência de planejamento. “Ninguém de fato apresentou até agora um estudo de curto, médio e longo prazos sobre os impactos da municipalização”, destacou. Segundo indicador do TCE, a educação municipal tem piorado nos últimos sete anos, com quedas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) desde 2019.
Outro alerta trazido por Rossi foi quanto à transferência de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). No caso de adesão ao Mãos Dadas, ela será feita pelo Estado aos municípios por meio de convênio, significando que as prefeituras ficam livres para usar o recurso como quiserem, explicou.
A prefeitura novamente se ausentou da audiência, atitude lamentada pela comissão.
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